Breve apresentação da obra e
autora
A obra utilizada para a resenha a
seguir é “O espetáculo das Raças – Cientistas, instituições
e questão racial no Brasil 1870-1930”, de Lilia Moritz Schwarcz. A
autora é professora livre-docente do Departamento de Antropologia
da USP e já publicou diversos outros títulos, inclusive o quarto
volume da coleção Historia da Vida Privada no Brasil . Na presente
obra, tratam-se principalmente as discussões científicas acerca da
miscigenação de raças no período indicado no título.
Vale lembrar que “O espetáculo das
raças” foi editado pela primeira vez em 1993, revelando, desta
forma, o pioneirismo da autora na abordagem desses temas. A leitura
fácil porém esconde a complexidade dos temas abordados,
necessitando de uma maior atenção em pontos de destaque para a
melhor absorção do conhecimento que a obra proporciona.
O Brasil do fim do século XIX
Schwarcz nos lembra que o Brasil da
década de 1870 é um país que está saindo gradualmente de uma
situação de escravidão e, ao mesmo tempo, com uma necessidade de
entender a própria constituição de seu povo. A complexidade da
miscigenação existente no país era alvo de diversos estudos
nacionais e de estrangeiros que vinham tentar entender nossa
constituição.
Um dos exemplos de estudiosos que
vieram para tentar compreender a formação do povo brasileiro, foi o
baluarte do racismo, conde Artur de Gobineau, que em certo momento
diz que o país “trata-se de uma população totalmente mulata
viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia”. Vale
lembrar que a vinda de muitos desses estudiosos para o Brasil era
financiada pelo governo, dada a precariedade de nossas instituições
de ensino e o ideal quase comum a todos da época de que
principalmente a Europa era o grande centro da intelectualidade
mundial. Por esses motivos, podemos apontar o sucesso das teorias
estrangeiras para a explicação do caso brasileiro.
Nossas instituições primeiras de
ensino, criadas no início do século XIX com a chegada da família
real, ainda engatinhavam na produção intelectual, como em quase
todos os pontos não só do Brasil, mas da América Latina. Essa
situação fez com que as teorias europeias sobre as raças fossem
amplamente aceitas no país, sem críticas ou algum tipo de adaptação
para a realidade local. Esse quadro começou a mudar no final do
século XIX, pois gradualmente o Brasil se via inserido em um novo
modelo político e social, fazendo surgir uma certa autenticidade no
pensamento brasileiro.
A ciência no Brasil
O olhar da ciência da época para as
questões raciais no Brasil se deu principalmente após a Lei do
Ventre Livre, em 1871, quando a escravidão brasileira ruía
gradualmente. Muitas teorias dos imperialistas europeus eram
utilizadas para explicar a “inferioridade” da raça negra perante
as demais, negando qualquer possibilidade de civilização dos
negros. A miscigenação era vista com espanto ainda maior, pois
apenas as “piores” qualidades das raças misturadas se
ressaltavam.
Também no final do século XIX
começam a surgir os homens da ciência no Brasil. Nomes como Nina
Rodrigues, Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Osvaldo Cruz ganharam
destaque e muita popularidade na época.
Grande parte dessa elite intelectual
brasileira era reprodutora dos discursos europeus, principalmente por
serem de origem mais rica e muitos terem estudado na França e
Inglaterra, que eram os principais polos econômicos, políticos e
intelectuais da época. Suas ideias vinham principalmente das
correntes positivistas, deterministas e evolucionistas. Essas
correntes eram tão influentes que até hoje em nossa bandeira
podemos ler “ordem e progresso”, resultado da influência direta
do positivismo. Também nessa época algumas críticas ao modelo
europeu começam a surgir, dando origem ao pensamento brasileiro, que
começa a se constituir no final do século.
A grande notoriedade desses homens
justifica-se porque a ciência era assunto em voga no finais do
século XIX. Discutir ciência era a moda entre os homens letrados:
diversas publicações entre revistas e livros se dedicavam ao tema,
que estava em plena efervescência no país. Muitos viviam a ciência
como uma espécie de sacerdócio.
Entre os temas discutidos pela
ciência no final do século XIX estavam as teorias raciais da época.
O assunto estava em pauta, pois a escravidão brasileira começava a
ruir, e havia a necessidade em saber cientificamente qual o papel do
negro na sociedade em que acabada de ser inserido. Essas teorias
raciais dialogam principalmente com autores franceses do século
XVIII: Rousseau Buffon e De Pauw destacam-se como grandes influências
para justificar diferenças essenciais entre os homens.
Assim, podemos dividir as ideias dos
homens de ciência no Brasil da época em duas principais vertentes:
o antropológico, ligado às ideias de poligenismo, imutabilidade,
que defendiam os tipos humanos que tinham forte ligação com o
pensamento biológico e, por outro lado, os estudos etnológicos, ou
seja, monogenista, evolução cultural que era ligado ao iluminismo
de Rousseau, tendo como adepto Nina Rodrigues.
O papel dos museus no país
O surgimento dos primeiros museus
etnográficos no país foram um grande avanço para a emancipação
do pensamento cientifico do Brasil na época. Os museus também foram
importantes nesse contexto para afirmar os discursos dos cientistas.
Schwarcz cita 3 principais museus: o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que era ligado ao imperador na
capital do país; o Museu Paulista (ou do Ipiranga) em São Paulo,
que para muitos personificava um gabinete de quinquilharias da
emergente elite paulistana do café; e o Museu Paraense Emilio Goeldi
que, às portas da Floresta Amazônica, tentava criar um novo polo de
intelectualidade no Brasil.
A própria autora diz:
Ao
mesmo tempo em que ajudaram a popularizar no exterior a imagem de que
o Brasil seria um grande laboratório racial – Um exemplo para o
mundo –, introduziram os museus etnográficos no país os um olhar
particular. Um olhar naturalista que classifica conjuntamente fauna,
flora e o homem em suas produções. “A perfectibilidade humana
fará seu papel no Brasil, assim como a natureza não cessa de agir
nas especies animais e vegetais”, dizia Von Ilhering esperando em
um aperfeiçoamento evolutivo nas desacreditadas populações
mestiças e indígenas do país.1
Ou seja, nem só de exposições
viviam os museus brasileiros, diversos estudos eram realizados em seu
interior. Dialogando com o exterior, essas instituições coletavam
no local em que se encontravam exemplares preciosos que atestavam as
especificidades desse nosso “exótico país”, mas também
possibilitaram a comprovação do problema racial.
Os institutos Históricos e
Geográficos no Brasil
Outros institutos, dessa vez, os
históricos e geográficos da época também são analisados pela
autora. Essas instituições tinham como objetivo criar uma historia
nacional e oficial, mas tinham como grande dilema a inclusão do
negro e do índio na formação histórica brasileira.
Nas palavras da própria autora:
No
entanto apesar a admiração que os modelos deterministas pareciam
gozar, eles mais serviram de referencia do que inspiraram a
interpretações originais... O projeto de Von Martius, apresentado
nos primeiros anos de IHGB, ainda era o modelo vencedor. A História
do Brasil consistia na história de suas três raças formadoras
convivendo em ordem e respeitando as hierarquias e suas desigualdades
biológicas2
Então podemos dizer que os negros
eram inseridos na historia oficial brasileira do final do século
XIX, como seres cientes de suas limitações e de hierarquia abaixo
de outros grupos sociais apontando para um branqueamento natural da
sociedade reservando um futuro branco e europeu para a nação.
As faculdades de Direito e Medicina
As
primeiras faculdades de direito no Brasil, foram criadas também
durante o segundo império. Apesar de ainda ser governado por um
português, o Brasil buscava cada vez mais se emancipar culturalmente
e intelectualmente dos lusos. O curso era muito cobiçado na época,
pois os concluintes se tornavam intelectuais da sociedade local.
Basta lembrar que muitos professores de História eram formados em
direito, o que revela a diversidade de áreas que o curso abrangia
para a época.
Essas instituições de ensino
serviram, entre outras coisas, para legitimar diversos discursos
raciais. Pernambuco por exemplo, oferecia cursos de antropologia
criminal formando principalmente cientistas, já a faculdade paulista
tinha como foco a formação de políticos. Um dado interessante a
ser destacado é a falta de um currículo se não unificado, ao menos
parecido, entre as faculdades que ofereciam o mesmo curso.
Segundo Schwarcz, as faculdades de
medicina especialmente da Bahia e do Rio de Janeiro, também
serviram parar reforçar o discurso racial no país a partir da
década de 1870, apontando para o higienismo e os males da
miscigenação. Segundo a própria autora: “Ou seja, para os
médicos cariocas se tratava de combater doenças, para os
profissionais baianos era o doente, a população doente que estava
em questão” (Schwarcz, p.190).
Conclusão
Para
entender as discussões raciais atuais, é preciso buscá-las na
origem, por isso a leitura de “O espetáculo das raças” se torna
cada vez mais importante. Com um livro ao mesmo tempo crítico e
informativo, Lilia Moritz Schwarcz consegue percorrer os diversos
pontos da gênese do debate racial brasileiro.
A busca pela identidade nacional
começa então a partir desses homens de ciência do final do século
XIX e quem sabe não terminou até hoje. Diversos historiadores
brasileiros tentaram em alguns momentos entrar nessa discussão.
Muitos erros e acertos foram cometidos desde o início e a discussão
proposta em “O espetáculo das raças” é apenas uma delas.
Bibliografia
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo
das Raças – cientistas, instituições e questão
racial no Brasil 1870-1930\. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
1Schwarcz,
1993, p. 98
2Schwarcz,
1993, p.137